De tudo um pouco, nós percorremos...
Quem visita o edifício principal da Quinta de Sintra apercebe-se que tem aí de tudo um pouco. Desde a base Georgian (ao Victorian que veio a constituir), foi muito o que se somou à edificação pré-existente. Melhor ou pior, ou seja com mais ou menos articulação*, e integração de diferentes partes (i. e., os elementos visuais constituintes) ficou criado pelos arquitectos Knowles, o que é o verdadeiro sintagma**.
Assim, o que nos aconteceu, frequentemente, de cada vez que nos aproximámos dessa casa (até antes de começar a estudar arquitectura), foi sempre uma sensação de enorme estranheza.
Tal e qual como o blend de um chá, onde aqui e ali se identificam sabores e aromas, mas em que a mistura final é ainda, e quase sempre, uma surpresa: porque dificilmente nos habituámos a ela: à junção muito especifica que ficou feita.
No chá são plantas com diferentes sabores, na arquitectura a junção e colecção de excertos (arquitectónicos) em geral vindos de outras obras, já existentes.
No entanto, foi sobretudo quando em 1987, a convite do IPPC***, recebemos a incumbência de registar as Patologias, já então de razoável gravidade existentes na construção; foi nessa altura, que nos apercebemos do enorme valor da obra.
Percepção que não deixou de ser acompanhada por uma imensa raiva, relativamente ao estado de abandono a que se tinha deixado chegar o que nos parecia ser valiosíssimo. E as obras (escritas) de J.-A. França, Francisco Costa, José Alfredo Da Costa Azevedo, o Guia de Portugal (Lisboa e Arredores), mais outras tantas, incluindo enciclopédias..., em geral foram-nos dando informações. E talvez à excepção das primeiras (França e Costa?) tudo era incrivelmente lendário. Sendo apresentado sempre sem uma noção relativa da distância temporal (pelo menos é disto que recordamos): como se fossem histórias e acontecimentos dos confins dos tempos, ou das brumas da memória, e não de setecentos, e depois de meados do século XIX. Aquilo que era afinal só um pouco mais antigo do que bisavós e avós que tínhamos conhecido...
Mas, muito curiosamente, o álbum recém-publicado (Monserrate Revisitado) já põe todos estes assuntos «nos antípodas»: como se, ao contrário, de tudo houvesse grande proximidade e as maiores certezas: sem brumas e sem quaisquer dúvidas, posto transparente e assim (obviamente) explicado.
Só que, por sorte ou por azar, connosco não foi isso. E a partir de Maio de 1987, na sequência de uma especialização feita um ou dois anos antes no IST, apercebemo-nos que (todas) as edificações foram sempre, principalmente, suportes de ideias. Sim: é que por muito que se fale e se pense, que são preponderantes as características de resistência dos materiais e das suas formas, e ainda as características de funcionalidade; que se diga que são estas que «desenham» as edificações, não estamos de acordo!
Mais: a frase de Louis Sullivan - a forma segue a função - é retórica pura! Uma frase «bem gira», engraçada, utilíssima até, mas mais uma das muitas blagues deste mundo (de teorias blablabla, e pouco sérias) em que vamos vivendo...
Para nós, desde que absorvemos melhor as «regras» do desenho arquitectónico/projectual, o que as justificou, e as justificava (às formas), foram razões. E por isso dizemos - motivos memoriais... Em que a palavra motivo já é a que usou Robert Smith para se referir aos ornamentos: ou seja, à linguagem das edificações.
Claro que todos sabemos que o «programa ideológico» de Monserrate foi riquíssimo, e demasiado vasto. Não cabe aqui. Mas talvez caiba (?) que no final dos anos 80, na nossa raiva contra a incultura dos poderes instituídos (vinda, quiçá dos "quase mais de 50 anos de fascismo"?), e incluindo nesses poderes as universidades, que ainda mantêm as mesmas posturas: caladas, como ratos, a não transmitirem para fora o Conhecimento que algumas vezes produzem...
Nessa sensação, e num sentimento crescente, que passava a ser de pena, e lamento pela imensa perca cultural a que se tinha que assistir (tanta pobreza, tanta falta de visão); então teve-se também a noção que era essencial «demolir» toda uma grande série de preconceitos, incrivelmente estabelecidos, e redutores, que persistiam à volta de Monserrate.
Percebeu-se que teria que ser a lógica - mais do que o hábito de contar as Lendas do Padre Gaspar Preto e de um Cavaleiro Moçárabe... -, que deveria passar a integrar, e a prevalecer, nas futuras histórias de Monserrate. É que podem (devem até) essas histórias ser plurais, com todos os heróis que se queiram incluir e chamar para os elencos, mas que se compreendam, de vez, pelo menos as duas diferentes fases de Monserrate.
Desde o Chateau de M. De Visme - ou a Casa, que seguiu o paradigma francês tradicional. Isto é a regra/modelo para as mansões nobres, que deveriam ter telhados altos e torreões, ainda com raiz no modelo de Philibert De l'Orme (que por sua vez nasceu na longínqua Arche de Hugo de Saint-Victor). À segunda fase, com o novo paradigma que Francis Cook quis ter: uma imagem da Europa continental, antiga e classicista. Note-se que em Inglaterra algumas casas foram chamadas Italianates, de uma Europa com berço em Itália, a exaltar os seus «fazedores» como Jacob Burckhardt começou a fazer. E que, simultaneamente, ao não esquecer W. Beckford e G. Byron, consolidou a expressão romântica.
Seria um palacete exótico "ma non tropo". Pois bastava a «loucura» do Pavilion de George IV, em Brighton!
Francis Cook, ao contrário do seu rei preferiu uma obra que apesar de hoje ser vista como pouco convencional (e a de Brighton, essa não tem nada de «conveniente» para a casa de um rei...) tinha pelo menos a lógica da religiosidade protestante, e ainda a da última moda: Ruskin acabara de escrever The Stones of Venice. E se os seus arquitectos, nos vãos exteriores (dos alpendres), prolongaram e «estrangularam» os arcos trilobados, conferindo-lhes um cunho mais orientalizante; diferente do que está no Palácio dos Doges, ou na Ca d'Oro (mais gótico, cristão). No entanto note-se que John Ruskin desenhou uma tabela com cerca de 40 arcos/vãos diferentes, que tentou organizar por famílias em função da sua base-geométrica (ver vol. 2, p. 248, PL. XIV - THE ORDERS OF VENETIAN ARCHES)
As duas fases de Monserrate são absolutamente compreensíveis e integráveis no que aconteceu (também) noutros países. E embora artisticamente haja variantes regionais - cuja importância é fundamental sublinhar, e não esquecer que existiram! - algumas obras podem no entanto ser mais únicas, ou mais raras e valiosas; mas também (mais) pioneiras no criar dos chamados sintagmas. Que um dia mais tarde, eventualmente, se podem ter tornado em novos modelos - paradigmas -, que geraram outros, e assim sucessivamente (se vão tornando «epígonos arquitectónicos»).
Para a demolição que referimos, a dos muitos preconceitos instalados (ainda em 2004, quando uma nova fase se iniciou em Monserrate - PSML), e para separar imagens e temas visuais que na casa de Sintra foram como que «concatenados» pelos arquitectos Knowles (seguidores de J. Ruskin, segundo escreveu Henri-Russel Hitchcock) tivemos que ler imensos livros. E entre esses há 2 que não esquecemos. Porque o primeiro (e foi mesmo o primeiro a alertar-nos de modo sistemático, repleto de bons exemplos) é de 1979, edição da Thames & Hudson, Londres.
Apresenta o Orientalismo - "um gosto nada convencional" como referido pelo autor Patrick Conner no prefácio de:
E o segundo livro é da Taschen. Escrito por Marianne Barrucand, especialista na arquitectura do centro-sul da Península Ibérica (que às vezes raia as fronteiras do interior português). Nele, mas também noutros estudos da mesma autora, é dado algum enfoque à questão da geometria/desenho dos diferentes arcos. Um pouco na linha de Ruskin, com óptimos contributos, mas ainda sem perceberem (ambos) o cerne da questão. Razão - dizemos nós, para ler ainda André Grabar e Oleg Grabar, pois houve uma linha condutora entre o trabalho de André (pai) e o de Oleg (filho de André Grabar, sendo o mais novo um reputado especialista na Arte Islâmica).
Mais, só na actualidade é que se diz, assim superficialmente (e assunto encerrado), que é oriental. Sem o mínimo esforço de compreensão, ou de localização do dito Oriente? Aliás, Christopher Wren terá sabido mais do que se passou em Toledo - já que esta é a questão de Maria João Neto e das Origens do Gótico (que nos colocou em Out./Nov. de 2001):
Em suma: todo o contexto religioso gerador de ICONOGRAFIA para as Artes Decorativas, como estão no edifício de Monserrate - e que sobram depois para os vitrais, ourivesaria, cerâmica, tapeçarias..., etc., etc. A verdadeira obra primeira (que teve depois vários filhotes e descendentes), é a questão que Monserrate, mais uma vez, coloca!
~~~~~~~~~~~~
*Lembre-se o Essai de Christopher Alexander - o meu livro é em francês - De la Synthèse de la Forme, Dunod, Paris, 1971.
**Na verdade não nos referimos a Beleza. Estamos simplesmente a falar de ideias (que foram traduzidas em formas, e em detalhes arquitectónicos). Por isso, quando se fala do «estilo Knowlesiano» de Monserrate é muito o que nos ocorre. Primeiro (uma gargalhada!) sobretudo a começar por Saussure e pela Linguística, as aulas de Semiologia de Tomás Taveira, na ESBAL 1973-74. E se há obras ou edifícios alguns melhores para explicar Símbolo, Paradigma e Sintagma (estes 3 elementos que nos «moeram a cabeça», e deixaram sementes para o futuro) de certeza que uma dessas obras é o palacete de Monserrate! Diria até que é uma das óptimas provas da aplicabilidade/transposição de análises linguísticas e semiológicas à linguagem visual da arquitectura.
***Assim se chamava, foi depois IPPAR, IGESPAR, e agora (talvez?) DGPC