Claro que um dos factos muito inesperados da minha vida foi ter que ir fazer um mestrado aos 50 anos...
Quando, francamente - e pensem o que quiserem da afirmação... - já me achava um bom bocadinho (ou bocadão?!) sabedora em várias matérias necessárias ao fazer da arquitectura e do design, sobretudo para espaços interiores. Tudo o que era técnico: luz, acústica, climatização, segurança, materiais, patologias, etc., etc., num cv que inclui algumas obras projectas e construídas (antes do dito mestrado).
Mas se era preciso, meio-chato, meio-feliz - porque a «menina asmática» se tinha habituado a gostar de tarefas mais ou menos quietinhas, e desenhar, ler e estudar dão para isso -, mais uma vez lá fui eu aprender, com todo o prazer.
E adorei aquela escolinha da FLUL (para meninos muito crescidos e importantes!). Num edifício em que, fascinante, a certas horas os corredores lembram principalmente o movimento/correria das gares do metropolitano.
Por isso entrei e passei a estar num espaço com pé-direito altíssimo, onde havia um "mezanino" e uma escada para o piso superior (seriam arquivos?), com uma guarda ou corrimão onde alguém afixou um autocolante: "proibido fumar". Só que a escada íngreme, introduzia no espaço uma tensão (horizontal-vertical) fazendo com que o autocolante quadrado, e a guarda da escada, não batessem certo...
E assim aquele meio-torto, tornou-se num verdadeiro emblema. Pois (como se diz em francês) "d'emblée" aquela falta de sintonia dizia-me imenso... Quem o afixou baralhou-se, e portanto cada vez que (eu) entrava na sala era dum fado da Amália que tinha que me lembrar.
Claro que hoje esta «historinha» se pode tornar ainda mais irónica: pois nesse espaço não só percebi a obra de Ruskin, a sua atitude de conservar em vez de se restaurar, e como um único monumento pode «encapsular» (quase) toda a História da Arte. Mas também, como a maioria das obras visuais são, ou funcionam, como verdadeiros "post-its".
Ora o aviso do proibido fumar, que um dia algum designer - esforçado e esmerado, cheio de cuidados, estudou e concebeu -, assim (mal-)afixado na bordadura inclinada da escada, era (para mim) a mnemónica de "...a vertical de qualquer lugar, deixa de ser perpendicular...".
Etiqueta que, diga-se, sempre me apeteceu ir endireitar: porque era a antítese da noção de Arte, quanto mais da sua História. Mas, se a casa não era minha, não ia endireitar as velas dos candelabros...
Talvez tenha «filosofado» sobre o assunto? Tive que aceitar conviver com a «aberraçãozinha», e nesse espaço, desde Nov. 2001 a Set. 2004, muito se passou. Chegando a dar uma «aula» sobre o Aqueduto das Águas Livres e a ligação/semelhança visual, de alguns desses Arcos (os maiores) com um outro Arco, que terá existido na fachada de Seteais.
Também a explicar, com o apoio de uma mini-moldura (reprodução dos «Painéis das Janelas Verdes»), que a todas aquelas figuras, como na arquitectura, subjacente está uma questão antropológica: pois um dos representados está vestido de pescador, outro de bispo, outro de santo, outro de..., etc., etc. (como aliás um filminho de 7 min., de Manoel de Oliveira, tão bem demonstra).
E voltando à noção antropológica, em resumo tentei transmitir a ideia de que no passado também a arquitectura se vestiu ou vestia, sempre. De alguma coisa: com paramentos e ornamentos falantes, «dizentes» (e condizentes), de algum outro sentido. O qual era muitíssimo mais elevado e amplo - a extravasar do que se vê -, e está patente nas formas. Concluindo: daquilo que é o simplesmente visível.
Ou ainda, num outro dia, e isso terá sido o mais inesperado de tudo (havendo provas), ter que explicar à orientadora como vários sinais de D. Afonso Henriques, ou as Cruzes Páteas, ou os chamados Culots cisterciences, ou uma bordadura de entrelaçados - linda que envolve a Igreja de Sta. Maria de Belém Jerónimos; e ainda, como os círculos entrecruzados (do Romanesque segundo ela, e Christopher Wren...). Como a mandorla dos portais (ainda) românicos - mas já a caminho de estilo gótico... Como tudo isso era/é a mesma coisa! Porque é exactamente a mesma Geometria, embora sempre a evoluir.
E já agora, imagens a lembrarem o movimento, quase como num filme de desenhos animados. I.e., desenhos e formas animadas, pois na verdade (e agora jogo aqui com as palavras) as ditas formas «tiveram alma»!
Assim, num tal dia, e cheia de emoção, expliquei como (vários "doodles", da imagem seguinte) se tornaram ornamentos, e também em elementos arquitectónicos; que alguns inclusive são considerados elementos de suporte (como é o caso do arco quebrado e das ogivas):
Usando praticamente sempre as mesmas regras/formas da Geometria. E que por isso tanto valiam - ou seja, seriam para eles (no passado) vocábulos sinónimos: quer estivessem na vertical, ou fossem postas na horizontal. Ou ainda, se diferente do que é mais normal, as referidas formas fossem colocadas invertidas! (i. e., «de cabeça para baixo»)*
Sim, eu nunca podia esperar - embora quando fui admitida nesse curso de mestrado um dos Profs. muito simpático me tivesse dito que a minha vida, o meu CV, era holismo (palavra cujo sentido desconhecia). Sim, insisto, era para mim completamente inimaginável fazer a(s) descoberta(s) que fiz; ou poder perceber o que percebi. Muito do que, mais recentemente (em 2012), tudo isso levava o meu orientador do doutoramento - Fernando António Baptista Pereira - a repetir (furioso) que eu não ia fazer uma História da Arte!
Igualmente inesperado e inimaginável (mas aí já fiz o que esteve ao meu alcance, para ser como foi) aconteceu a publicação do trabalho dedicado a Monserrate em 2008. Foi um dos maiores privilégios, também pela data (2008), e por ter sido uma publicação da Livros Horizonte. É que o contacto extremamente simpático com o Dr. Rogério Mendes de Moura (cuja filha encontrava tantas vezes quando entrava no IADE na R. Capelo às 8 h...), é inesquecível**.
A imagem seguinte vem desse livro, e devo dizer que um outro gozo, mínimo, mas que sem dúvida deu prazer, foi a escolha das frases a colocar em epígrafe. Depois da dedicatória, poder registar aquelas duas máximas de Jacques Le Goff e de Guarino Guarini:
Por ter escolhido do autor mais recente o seu sublinhar da importância do passado. Alguém que, como se pode ler, defende que a Idade Média se arrastou até ao século XVIII. E trazer do autor mais antigo - (se é que não é uma imensa injustiça aplicar esta palavra, para escrever sobre Guarino Guarini***?); não só a sua concepção da arquitectura, mas sobretudo a capacidade que reconheceu à «disciplina» para ajudar a mudar a realidade; sim isto deu gozo!
Pequeno prazer. Talvez por sentir alguma beleza nesta junção, meio-contraditória? Um diálogo, dialéctica, entre o recente: o autor - Le Goff que puxa para o tempo passado, longínquo. E o autor do passado - Guarino Guarini, que fez pontaria para um futuro, tão mais longe, que na frase até parece ser para sempre?!
Dialéctica que é afinal um jogo de contrários, como o equilíbrio (quando ele se consegue atingir?) entre tradição e modernidade. «Receita» que tantas vezes alguns lêem nas obras? Porque, de facto, os seus autores conseguiram, mesmo (!), integrá-la nas melhores obras.
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*Não, o meio torto daquela etiqueta de proibido fumar, em História da Arte (na Arte antiga...) não existe. Pois todas essas formas são sempre mais que perfeitas. A não ser que correspondesse a uma divisão do círculo em 6, 8 ou 16 partes iguais, e que por alguma relação de concordância, ou por semelhança (mesmo que de longe) lhe fosse paralelo. Porém, essas divisões (e geometria) não constam em obras do Estado Novo, como é a Cidade Universitária - Campus da UL.
**Alguém que pode ter sido responsável pela nossa «sobrevivência». É que se o livro, esse objecto material nunca tivesse existido, como poderia mostrar (ou convencer, se é que consigo?) a muitos dos que permanentemente se incomodam com tudo o que não faço? Ou, com o que pensarão como sendo inutilidade e preguiça? Como poderia responder, que embora não vejam e não compreendam, há muito mais? «Alguma coisinha», valor que desconhecem mas existe.
***Alguém cujas obras seriam incrivelmente inspiradoras, ou até essenciais, quando se quisesse ensinar (a ser criativo) em disciplinas de Metodologia de Projectos de Arquitectura ou de Design. Isto, claro, se os profs. desses temas estivessem a par da incrível criatividade de que Guarino Guarini deu provas? Do modo como pegou em «ideogramas medievais» (alguns deles grafismos de Isidoro de Sevilha, ou anteriores?) e fez deles o desenho em planta(s) de vários edifícios, ao mesmo tempo que lhes conferia tridimensionalidade:
E que a História (relato cronológico do passado) da Arte (ou das melhores obras visuais que os homens têm produzido) está cheia disto:
É mesmo quase só isto...